sábado, 7 de setembro de 2019

Borboletas . Arte Fernanda Correia Dias
Borboletas . Arte Fernanda Correia Dias

Ah... Elviram do Ipiranga às margens plácidas
96 anos! Viva e brilhante no meu coração.
Já teríamos ligado cedo para cantar parabéns para você pelo telefone e a estas horas ainda estávamos certamente em algum programa comemorando.
Você estaria nos fazendo rir com suas brincadeiras, ou nos ensinando a dobrar os papelinhos encerados e coloridos para montar os origamis, ou a procurar as palavrinhas nos dicionários. Ah... Como era boa a sua companhia delicada! Muitas histórias seguidas e emendadas umas nas outras, muitas lembranças lindas. E uns haicais? E uns poetas japoneses? Uma pinturinha num envelopinho? Uma notícia do meu signo chinês... Esse azulzinho que você está vestida me lembra um vestidinho que vai ficar ótimo em você: vai ali, abre a porta do meu armário, mais para esquerda puxa para fora o cabidinho que tiver algo azul... Esse! Esse! Vem cá, deixa eu te vestir com ele, vai ficar ótimo, dá uma voltinha, três passinhos para trás, olha nos espelhos da porta do armário, gostou? É seu! Ficou lindo em você. Eu comprei no Havaí. Não cabe mais em mim, mas eu vou adorar olhar para você vestida nele! Ficou ótimo com a sua sandália e essa sua bolsa de palhinha. Falta um chapéu! De palhinha! Pega ali em cima do armário! E lá estávamos nós duas saindo para almoçar na Siqueira Campos ou indo ao Leme, e eu, produzida e vestida por você! Um gesto de carinho seu, comigo, porque me amavas. Assim era também com outros vestidinhos, roupinhas e biquines para irmos à praia. Você me acolhia no seu amor, e eu te cuidava.
Me ensinavas umas bossas novas, uns sambinhas, umas canções, o barquinho... Me ensinavas a dedilhar o violão.
Gostava quando você abria os seus livros para ler um algo muito importante, que eu precisava saber.
Você ia direta e certeira na mensagem que queria me entregar lendo na sua própria voz para que eu ouvisse, enquanto apontava as linhas que lia, ombro à ombro comigo, e o esmalte das suas longas unhas suavemente sobre as letras, me encorajava ao abstrato e descortinava o sentido que aquele parágrafo acrescentava à nossa conversa. Tínhamos mesmo esse hábito de a qualquer hora ou momento nos encontrarmos frente a um específico livro e em seguida você localizava outros complementares e já estávamos no recamier ou sobre o imenso tapete vermelho, sentadas, lendo e localizando.
Eu, semana passada falei de você, para uns amigos atentos, sensíveis e inteligentes, porque precisei falar sobre seu pai, meu avô, de quem herdei o nome, o Fernando Correia Dias.
Falei porque me lembrei de como vocês três, filhas, e a vovó e o vovô tinham a prática de uma excelência em tudo o que faziam, com as mãos, com a inteligência, com os sentimentos e o bom senso. Essa excelência que a maioria identifica como bom gosto, mas que é a extensão de sentimento reunindo inteligência e sensibilidade expressando estética apuradíssima, equilíbrio irretocável. Harmonia.
Isso é tão raro. Tão raro.
Lembrei de até na forma de pousar um talher, de estender uma coberta, de eleger uma única cor, porque nem estou falando de composições, arrumações, harmonizações, mas do modo de agir na necessidade de uma ação, tudo trazia a presença da excelência inédita, resposta  precisa, para aquele instante.
Depois de vocês, essa excelência em naturalidade e equilíbrio, que vocês e diversos,  reconheceram em mim, reconheço na Gaya e na Kenya.
Lembrei dos doces de alfenins de Carlos, seu avô materno, quando recortava borboletas prendendo-as invisivelmente em alfinetes para sobrevoarem as delícias que praticava por prazer e alegria, e também de como Vó Cecília escreveu para Armando Cortes Rodrigues, descrevendo a minha trisavó Jacinta: “...Ora, o que a cultura não lhe deu ela trazia em si com uma força quase explosiva. E era uma mulher de tão bom senso que nunca deixou de resolver com acerto os seus problemas; de tão bom gosto que ainda hoje eu mesma sou a sua aluna de estética; de tanto sentido prático, que conseguiu desembaraçar-se de todas as confusões em que mergulharam dez anos de mortes consecutivas e dinheiros esparsos, e ainda me legou a sua casa ao morrer. Para uma mulher ter atravessado tudo isso fiel às suas saudades, absolutamente só, em suas aflições, é necessário possuir qualidades muito poderosas, que não se encontram constantemente nessa proporção, e com essa eficácia. E não se esqueça que o meio só lhe podia ser adverso.- Cecília Meireles"

Fernanda Correia Dias
in Feliz aniversário, Tia Elvira!

2 comentários:

  1. Que homenagem mais linda! Me emocionou, Fernandinha. Que sigas assim, elegante e linda e natural e admirada, como suas ilustres e queridas antepassadas, que são também nossos objetos de admiração ... ❤️❤️❤️

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  2. Telma! Como vai você?
    Ah! Minha Tia Elvira é uma querida, de quem cuidei e cuido até hoje. Meu coração não existe sem o dela e sem os delas! Ela me amava e me dedicou muitos anos maravilhosos. Ela foi de uma sensibilidade específica,dedicada e especialmente delicada comigo. Visitávamos exposições,museus, livrarias, bibliotecas e ela gostava de me ensinar infinitamente o que sabia. Era moderna, contemporânea até aos dias de hoje. Dela ganhei a surpresa da minha primeira mala de pintura com tubinhos de tinta à óleo com que pude pintar o que imaginava em tela de algodão.
    Foi a Tia Elvira que me apresentou ao que minha avó Cecília Meireles, contou de mim, ao Pedro Bloch e ele publicou num livrinho dele. Ela tirou esse livrinho da estante, diversas vezes. Lembro que a primeira pintura que fiz com tinta óleo, foi um cavalinho branco sobre fundo preto, numa tela de uns 50 cm, e que o cavalinho não estava parado e tinha as quatro patas como fora do chão, e todo ele mergulhado na escuridão.E era tão definido e figurativo, todo branco. Dizem alguns que é o cavalo dos vencedores prazeirosamente no ar. Mas quando pintei, não pensava nisso. Ela gostou imenso do cavalinho.Mas era assim mesmo que eu me sentia naquele tempo e acho Telma, que apesar de tudo e de todos, ainda me sinto assim, porque as histórias felizes são sempre muito poderosas.
    Saudades, Telma!

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