sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Foto Fernanda Correia Dias do texto do 
Profeta Gentileza, - Sr. José Datrino - escrito por ele mesmo, 
 na pilastra do Viaduto do Gazômetro.


Conheci pessoalmente o Profeta Gentileza.
Ele mesmo editava seus poemas, nas pilastras do Viaduto do Gazômetro.

Num país gigante como o nosso ele ensinava que gentileza, gera gentileza.



Fernanda Correia Dias
in Gentileza gera gentileza.





quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Cão não casa com gata . Foto Fernanda Correia Dias no VillageMall

Você é você e suas circunstancias, José Ortega?
Eu sou.
Me faz mal ou me faz bem o que está à minha volta. O que vejo. O que cheiro. Onde está minha alma, vestida em que corpo, em que roupa, em que ambiente. O que estou ouvindo, o que estou pensando. Sou capaz de ficar doente, muito doente, depois de viajar ao lado de alguém com perfume em base de óleo...e sou capaz de me curar de tudo cheirando um jasmim do cabo ou um lírio branco.
As cica-phoenix me entregam felicidade, entusiasmo, plenitude! Mas uma carrocinha de churros-pablos, com aquele vasilhão sobre o fogo e o óleo fervendo, me vira pelo avesso por três dias e eu ponho para fora o que eu tinha, a minha constituição interna e corporal, até ficar muito, muito doente, amarela, pálida e em seguida, viva-transparente. 
Ao lado de pessoas raras, sou capaz de conversar mil e uma noites, por sinapses, metáforas e fluência. Com outras pessoas, mal posso ouvir o timbre que já conheço a alma inteira e o mal que vou enfrentar, sorrindo. É, porque eu tenho isso, uma percepção sábia e antiquíssima, e um constrangimento e uma vergonha alheia, que eu não exponho na frente do meu sorriso, para não magoar o inocente de si mesmo. Mas... se não for assim, eu levo aquela dor alheia vincada na minha psiquê por dias, meses, anos e as vezes, por todos estes anos, aqui comigo, sem conseguir expurgar. Convivendo.
Difícil é explicar ao sujeito que diz que nasceu para te amar, que ele é cão e que cão não casa com gata. Ele pensa que é charm, que você está fazendo. Que é indiferença para provocá-lo. Que estás esnobando, etc... e você está praticando a verdade. Ele pode até te convencer e casar com você, passar 18 anos ao seu lado, mas todo instante, ele , sendo ele mesmo, vai enxergar a gata porque é cão.
É um sofrimento, mesmo quando ele se esforça para ser gato. Ele é cão.
Falta ter nascido gato, para compreender o que nunca dá para explicar para ele exatamente por quê ele trouxe um jarro horrível, de presente para você, só porque você falou que gosta de jarro de barro.
Ele achou lindo, aquela coisa horrível e imensa e fez questão de te avisar que comprou uma surpresa linda e que você vai adorar! Como eu não gostei? Como? Porque não posso conviver com o jarro?

A síndica do prédio da esquina começou a reforma do jardim mais belo da rua com uma disposição impressionante. Mandou limpar as letras douradas do nome do prédio e colar as que estavam faltando e que ela comprou. Ela não se importou que para polir as letras douradas que estavam presas, o mármore branco ficasse manchado de várias nódoas, decorrentes da limpeza, nem que as letras que ela comprou não fossem da mesma qualidade e cor das demais. Assim o nome do prédio ficou legível para quem? Para ela. Porque eu lia desleixo, falta de sensibilidade antes de ler o nome do prédio.
Ela arrancou todas as plantas das jardineiras, porque mandou uma máquina polir os mármores das jardineiras. Plantas lindas, nobres, que eu costuma conversar em pensamento quando eu, os pássaros e as borboletas passávamos ao lado delas e de seus brotos e flores. Eu agradecia a existência daquele conjunto em estado de beleza natural, um pedaço de Mata Atlântica na esquina da rua. Um aroma de natureza! As plantas eram felizes e me faziam feliz. Era o jardim mais belo da rua. Era. Não é mais.
A sindica transformou criteriosamente as jardineiras em jardineiras de pedras azuis, pedras vermelhas, pedras brancas, num desenho que ela mesma orientava ao jardineiro que fizesse atendendo sua direção. E ficou horroroso. Ficou horrível. As pedras são britas, pintadas. Com tinta.Horrível. E agora me custa chegar na esquina para sofrer aquele mal. Ver aquelas pedras pintadas naquelas cores, como se fosse uma prefeitura de um estado do interior, que ainda guarda uma vaidade inocente e bela...Mas... No caso da síndica, que conhecia aquele jardim fantástico, que destruiu aquele jardim, ficou só a pretensão. A pretensão de fazer melhor do que estava. A soberba ignorante, grosseira, atravessando o que era o equilíbrio sublime...A consolidação do seu despreparo.
As vezes, para o cargo, a pessoa está habilitada, mas não tem competência. Não corresponde. Não pensa naquele idioma. 

É cão. Não é gato.

Como é que eu sei?
É uma questão de psicologia?
De sensibilidades?
Filosofias?
É Ortega.
Você é você e suas circunstancias.

Fernanda Correia Dias
in Para uma passarinha








quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020




    Imensa precipitação pluviométrica.
 Estou no deserto. Quente e árida. Os camelos ouviram meu chamado, mas nenhum respondeu o que eu preciso ouvir. Ruminaram. Olharam para um lado e para outro. Para cima e para baixo. Se entre-olharam. Empacaram em palavras-cruzadas.
Os desertos tem a reputação de sustentarem pouca vida. Quase não respiro, para não te acordar. Erosão eólica. Os camelos bufam dormindo. Transitam ratos, cangurus, cobras e lagartos com o vento, entre as areias suspensas da noite escura. Conheço e reconheço cada um.
Você precisa descansar, Amitaf.
Posso passar a vida inteira,ao seu lado, em vigília, em evapotranspiração, perplexa e sem água, para não te acordar, para que descanses dos maus e acordes viva,  para a linda e nova vida.
Mas, longe de ti? "Amanhã"? Amanhã? Só Amanhã? Como assim? Longe de ti, amanhã é muito longe.
Onze horas da noite e a temperatura caiu. Trago no meu peito essas flores sempre abertas. Não são Onze Horas, são Sempre Vivas.
Os camelos certamente dormem, Amitaf, e eu em vigília enquanto meu olhos correm no céu com as estrelas cadentes na noite escura ao seu lado.
Só amanhã. Só amanhã? 
Ontem falei com você, Amitaf, e você não me contou?  E só saberei amanhã? Como assim?? Foi uma emergência? Foi por isso?
O céu está escuro, negro, frio. Só essa areia nos meus olhos entre as estrelas. As monções se desenvolvem em respostas à variações de temperatura entre os continentes e os oceanos. Sou capaz de resistir e suportar, até amanhã, longe de ti.
Seja lá por qual motivo ou a flor mais singela, eu sempre prefiro a verdade. Toda verdade é bela.
São onze horas, Dormideira. Descanse essa noite, amanhã me digas, Amital: Adnanref, Bom dia!

Fernanda Correia Dia
in para Edlihtam, Amitaf e Adnanref, no deserto.