segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Ovo.Foto Fernanda Correia Dias
Ovo. Foto Fernanda Correia Dias

No dia em que a minha mãe me ensinou a quebrar ovos eu aprendi muita sabedoria.
É um gesto muito forte, transgressor, de partir o perfeito, o lindo, o liso e o inteiro para usar o meio, o interno, o recheio. Minha mãe cheirava as cascas abertas e descartava no lixo, se tivesse duvida da integridade para consumo, daquele ovo.
Quebrar o ovo, vai na direção oposta à preservação, conservação do inteiro. Mas é a minha mãe, tratando da minha saúde, quebrando aquele mundo que ela entrega ao fogo desprezando as cascas.
Ou cozinhando o mundo dentro do mundo de outro mundo.
Só isso foi metáfora para muitas respostas e compreensão de varias das das minhas dúvidas e  interrogações. Quantas vezes precisamos tomar esta decisão de quebrar o inteiro para chegar às claras e ao núcleo amarelo nas gemas?
E a surpresa de alguma vez estarem podres estragando todos os saudáveis? E o cheiro horrível? Insuportável? Como pode ser tão insuportável?
A consistência das claras fritas ou fervidas me ensinavam por observação e alquimia que "a transparência  também fica opaca  e completamente branca sobre o fogo. . E aquilo que era liquido, translúcido, transparente, mole, coagula feito uma gelatina e se transforma numa aparência de porcelana, opalina,  vidro, todos na possibilidade impensável de serem flexíveis, impondo a revelação!
Essa transformação dos ovos perfeitos, inteiros, serem quebrados para obtermos o recheio pleno de vida na nossa vida, é uma transgressão muito antiga... muito antiga....Por que será que a vida se alimenta de vida viva e de vida morta? Mas que pergunta é essa numa hora dessas?
Pergunta de renascimento...provavelmente!
... E quando a minha mãe queria manter a casca do ovo toda inteira, para injetar chocolate derretido e na Páscoa surpreender a família entregando evidentes ovos de galinha numa cesta e ao descascarmos encontrarmos o chocolate? Era uma arte! Todos aplaudiam aquela brincadeira feliz de apesar das aparências frustantes, não nos frustrava, nos privando do chocolate! E não eram ovos ocos... eram sólidos e macios... Fico imaginando o tempo e a manobra que ela creditava ao exercício secreto de fazer um ovo para cada um de nós , sem que nós a víssemos fazendo... até o dia que eu vi e pedi para fazer e descobri que não era nada fácil...não... só ela!
Porque as coisas inteiras e perfeitas clamam por seus virtuoses até hoje. Não basta treinar, tem que ter no peito aquela certeza que faz, que pode, que domina! Ela possuía e era assim que ela batia com o ovo na quina do mármore ou para minha maior surpresa, esmagava de tal modo entre os dedos de uma de suas mãos, que eles elegantemente partiam ao meio!!
Aquele templo branco na mão da minha mãe, quando ela me oferecia fervidos, moles e quentes dentro das próprias cascas, nas tacinhas para come-los com colherinhas! Ou quando ela conseguia tirar aquela estrela solar no centro da lua intacta da frigideira e coroar meu spaghetti! Ou quando me oferecia Papos de Anjo ou Ambrosia, que ela mesma fazia perfumando a casa com aquela alegria de cravos, limões, leites, ovos e canela!
E quando a surpresa eram os ninhos de agrião com dois ovos dentro? Ou quando ela chagava da Colombo com docinhos que me encantavam: Ninhos de Ovos, barriguinhas de freiras, Pastéis de Santa Clara e fios de ovos para me enlouquecer...!
Ah... e usava como remédio... Uma gemada quando a tosse estava incontrolável ou para curar minha anemia, o bife de fígado com a gema e o espinafre......batidos no liquidificador, todos crus! Sim, eu bebia.
"Para reconhecer um ovo fresco, cubra-o de água num copo. Se flutuar `à superfície, está velho...se afundar, está fresco. Se ficar ao meio, ainda pode ser consumido."
Quanta sabedoria, simbologia, ciência e proteção aprendi quando minha mãe me ensinou a quebrar ovos inteiros.
"Abra cada ovo numa pequena vasilha isolada, e depois de examiná-lo, acumule em outra vasilha.Assim não terás o dissabor de ao ir abrindo todos na mesma vasilha e sobrepondo podres aos frescos, descobrir que terás que levar tudo ao lixo!!"
Aprendi a ter este cuidado. Esta inteligencia e sensibilidade. Essa precaução!
E também a cuidar da minha saúde, a respeitar-me e a  respeitar a sabedoria.
Entender claramente que existem "os saudáveis e os podres". A identificar. Classificar.
A acolher e a rejeitar.
Quantas metáforas cabem nessas sabedorias. Preserve-as.Cerque-se da vida saudável.

Fernanda Correia Dias
in Ovos e o gesto transgressor.

5 comentários:

  1. Quantas belíssimas metáforas, Fernandinha..! Adorei <3 <3 <3 Quanta verdade! Transformações às vezes exigem rompimentos. Por mais perfeito que o envólucro seja, é preciso rompê-lo para acessar aquilo que ele guarda.

    Preciso te dizer uma coisa: defendi minha tese de doutorado dia 13 de agosto. O título ficou "Tradução de poesia infantil e sua recepção via Pensar Alto em Grupo: 'As meninas' e 'O menino (azul)', de Cecília Meireles". Ainda não está disponível na Biblioteca da USP porque tenho algumas correções a fazer. Assim que as fizer e estiver tudo direitinho, te mando o link para você baixar, se quiser.

    Foi uma tarde linda! Parece que tudo aquilo que se aproxima da Cecília fica sob o encanto da poesia dela. Os examinadores gostaram tanto do texto, do que as crianças falaram, do resultado em geral, que pareciam tomados por um feitiço ceciliano: os encantados de Cecília... =)
    Ainda estou nas nuvens...

    Beijo grande,
    Telma

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  2. Mantenha-se nas nuvens, Telma!Mantenha-se! Porque mesmo que nada faças, ela fará por nós que a amamos e que sabemos o quanto é precioso pensar nela como uma flecha e segui-la! Todos sabem que é o encontro com a excelência, com a grandeza, a altura da generosidade e da humanidade, e isso é mesmo estado de êxtase em gratidão!Ainda terás muitas formas e diferentes substancias ao redor!Ela é assim mesmo, consolidada e etérea, falante até no olhar e lábios em silêncio!!! É dinâmica, é pensamento, é centelha divina, irmã do fugidio, eterna, mas só para quem lê o que ela escreveu!!!Só para os que amam a sabedoria e a inteligencia!!! Beijo Telma, Parabéns, quando eu puder o seu trabalho, me avise!!!! Outro beijo!

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  3. *quando eu puder ler o seu trabalho, me avise!

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  4. Sim, Cecília é assim, etérea, sublime, eterna. Fugidia pelo que há de inalcançável nela e, no entanto, eterna. Vive no éter, e talvez por isso também estivesse lá, naquela tarde há exatamente um mês, no éter circundando a banca, envolvendo-os em poesia. Fique certa de que te avisarei quando a tese for ao ar. A tese também ficará nas nuvens, por sinal ;) Beijo enorme, menina querida! <3

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