domingo, 17 de julho de 2016

Leque que a mamãe me deu . Fernanda Correia Dias

Para lembrar e lembrar o nome dos cinco...
Mamãe sempre falava sobre eles! Um grupo atômico, original e inesquecível! Era pelo cérebro instintivo, escorreito, líquido que ela formava as frases relacionando o nome deles com as emoções mais antigas que imprimiram nela origens e expansões! Era natural enveredarmos por estas conversas porque praticamos entre nós por toda a vida esse rio honesto, tão honesto que entre nós, só pelo modo de fecharmos os lábios reconhecíamos que a outra estava brincando de nos enganar... Não valia! Pedíamos imediatamente a revelação da verdade! Nosso espaço era o sincero e sem vírgulas.
 Eu sabia o nome de todos eles e as histórias...Mais tarde brincando com a etimologia dos nomes próprios do Antenor Nascentes, percebíamos como tudo se explicava...
Então... Num papelinho amarelo e azul, pedaço de um envelope, com a minha letra, leio: Cícero, Ciriaco, Teófilo, França e Dalva (!) Os nomes deles! Estão vivos em mim.
Estão salvos, estes nomes mágicos pertencentes à pessoas que exerceram tremenda influência na infância e por toda a vida da minha mãe, Maria Mathilde e na minha!
Eles eram escravos da Jacinta. Remunerados. Antes da Lei Áurea já estavam livres, mas com a onda da Lei, seguiram onde estavam e não quiseram deixar Jacinta e Cecília sozinhas, nem a remuneração e também, não tinham para onde ir! Não deixaram a chácara da Jacinta nem depois que Cecília casou... Nem quando nasceram as três Marias de Cecília... E ficaram com elas até os nove, dez anos... foram falecendo... Minha mãe adorava sentar na hora do almoço, no quintal da Chacará, com eles e comer angu! Apesar dos nomes de origem grega, latina, romana, eram todos negros, muito negros, retintos, amorosos, lindos menos a D´alva. O próprio nome explica  a cor da pele dela. Muito clara, alva! Olhos muito claros...Em comum os cinco tinham as mesmas qualidade de planeta-amor! Alegres, felizes, generosos, amorosos e brincalhões.
Mamãe dizia que os rapazes eram tão negros, com peles tão brilhantes, que pareciam azuis...Azuis e verdes eram os olhos de todos eles também!
Os dentes branquíssimos que eles lavavam com umas trouxinhas de pano! Dentro das trouxinhas, areia e folhas de hortelã e malvas machucadas...Assim também lavavam os dela! E ela gostava!
A Dalva lavava todas as roupas e eles estendiam. Cuidavam das frutas da chácara, das hortas, galinhas... faziam comida, compotas, vendiam as frutas na feira ou no portão de casa e passavam escovões nas tábuas corridas do piso, cantavam e dançavam. O França passava roupa com ferro à lenha.  Ensinou para a mamãe... Ensinou a acender o lampião de querosene, o fogareiro...A Dalva dava banho na minha Mãe e nas irmãzinhas na banheira, mas também no tanque de lavar roupa, na fonte e de mangueira e a Mamãe adorava tomar banho de banheira e no tanque, na fonte e de mangueira no verão carioca! E de regar o pomar, a horta e de inspirar o aroma da terra e folhas úmidas.
Muito tempo depois, mesmo morando num apartamento moderno com eletrodomésticos moderníssimos, quando faltava a luz ou gás, minha Mãe não perdia a disciplina das tarefas diárias e passava e ensinava a passar a roupa com ferro à carvão, fazer os deveres escolares à luz de lampião e cozinhava no fogareiro na área de serviço ladrilhada!
Mamãe adorava! Tia Elvira também! Como riam as duas lembrando as memórias que conservaram daqueles cinco e mais a Vó Jacinta! Por exemplo: Lembra quando o Ciriaco chegou com aquele embrulhinho na mão e os olhos espantados?A ponta do dedão do pé dele, estava embrulhada num papel de armazém e o embrulho amarrado com barbante de algodão? Lembra? A Vovó colou? A Vovó colou!!! No pé dele!!! A Vovó era a Jacinta, que era bisavó delas...Não conheceram a Avó delas, Mathilde, porque Mathilde faleceu quando a mãe delas, a filha da Mathilde, estava ainda com três anos de idade...
...E quando eles matavam as galinhas? Os leitões? ...Eu pegava com a minha mãozinha os ovos quentes e ainda moles das galinhas poedeiras no galinheiro da Vovó porque o Teófilo ia lá comigo...Lembra quando eles cantavam juntos  Boi da cara preta? E aquela....  hoje é domingo, pé de cachimbo? Lembra da voz grossa do Cícero? A Dalva aprendeu com a Vovó Jacinta a embrulhar as frutas e as flores mais bonitas no avental e levar para a fruteira e as jarras. Eu ia com ela e com o França...
E quando ficávamos trepadas no pé de abio e que o vassoureiro jogou aquela pedra que bateu nos meus olhos? O vassoureiro passava com as vassouras e nós repetíamos como eles diziam... 
Vás soureeeeeiiiirooosss...E quando a Dalva e Vó Jacinta nos levavam para comer biscoitos de cascquinhas e pirulitos de açúcar queimado do teleco-teco no portão da casa??? Maçã caramelada? E as balas de alcaçuz? Lembra do peixeiro com os cestinhos e a balança? Ciriaco sabia pesar e ver o peso...Brincávamos com aquela balança da Vovó e ele me ensinou a mexer naquelas garrafinhas de bronze e cobre, os pesos, e nos pratos!
De noite Vovó acendia os lampiões de louça e nos levava para as caminhas dos nossos  quartos...A Mamãe e o Papai trabalhando naquela sala com cheiro de papel , de  lápis e  de cor...Gostava de apontar os lápis, delavar os pincéis naquela água do vidro e ficar ali por perto desenhando. Gostava de brincar com os leques da Mamãe e da Vovó... Tão bonitos e cheirosos...
O Teófilo batia as almofadas, os tapetes e brincava comigo de me sentar no tapete e passear pela casa, lembra? E cair na piscina de almofadas?
Ciriaco é o mesmo que Homem do Senhor. Cícero é o que planta sementes. Teófilo é o amigo de Deus. França significa, o livre e a liberdade e Dalva, Fernandinha, também é um estilo literário de poesia provençal que escreve sobre a separação dos amantes na alvorada...E Mamãe me olhava com seus olhos lindos esverdeados, do planeta, amor,  estrela matutina, albus...brilhante!

Fernanda Correia Dias
in Para nunca esquecer de Cícero, Ciriaco, Teófilo, França e Dalva; da Mamãe Maria Mathilde; da outra Maria Mathilde, minha abisavó filha da Jacinta; da Jacinta e da minha Avó Cecília . Leque espanhol com dançarinas muito parecidas comigo, vestidas de vermelho 


quinta-feira, 7 de julho de 2016

Fernanda Correia Dias. Fotógrafa . O sol toca as coisas com seus dedos amarelos

Lembro quando estávamos quase chegando em casa, e alguém entre nós, as crianças gritava: " Salve-se quem puder!" Ou quando tínhamos que chegar em algum ponto e alguém entre nós, também criança, gritava: "O último à chegar é mulher do padre!"  Ou quando entrando em algum lugar caíamos numa armadilha e ainda ouvíamos: "Madeiraaaa!!!" 
A vida de adulto seguiu com estas chamadas ecoando quando a minha memória reconhecia que "eram demais os perigos desta vida!"
Quando eu estava enviando curriculuns, à minha volta ecoava: " Salve-se quem puder!" Quando eu era chamada para tomar posse dos cargos, lembrava " O último a chegar é mulher do padre!" Quando tomava decisões na mão contrária do bando, sendo a única e a primeira a me levantar, ouvia: "Madeiraaaa!"
É assim mesmo...Vai ser sempre assim...Viver é maravilhoso.
Fernanda Correia Dias
in Na hierarquia dos anjos, eu sempre fui anjo e sobre isso, todos concordavam.