segunda-feira, 16 de maio de 2016

Cauby Peixoto
Fernanda Correia Dias . Guache sobre cartão branco

Cresci ouvindo as faxineiras,cozinheiras, feirantes, motoristas e jardineiros idolatrando Cauby Peixoto. Era o cantor desta gente. Do rádio A.M. Meus professores, quase todos, nas escolas em Laranjeiras, em Ipanema e na Gávea ridicularizavam Cauby e declaravam que o cantor era alguém que não merecia crédito nem consideração.
Na minha família, abertos à musica, aos músicos e à concisão das ideias na poesia da musica, tudo ouvimos e conhecemos.
Então, anos mais tarde, em Copacabana, dentro de um super-mercado, próximo à estantes de enlatados, ele, o Cauby, estava conversando com uma senhora sobre as compras que estavam fazendo. Ouvi uma voz terna, firme, aveludada, espessa, dizendo com amor, palavras sinceras sobre o quê e por quê deviam comprar. Ponderava com equilíbrio, argumentava com razão. Considerava com palavras delicadas, gentis em assunto árido. Levantei meus olhos para a voz que estava na minha frente e era de alguém muito alto, provavelmente com mais de um metro e oitenta e seis. Eu estava abaixada e dali ele ainda ficava mais alto. Na minha frente dois pés cobertos por chinelos de couro preto, acolchoados, daqueles de quarto, onde os dedos ficam protegidos, a bainha de uma calça preta. Sobre a calça estava a bainha vinho do robe de chambre acetinado. Uma faixa sobre um transpasse na altura da cintura. Por baixo do transpasse uma camisa branca, de punhos e gola branca e a cabeça do dono da voz. Olhando na minha direção, o dono da voz, sorriu gentilmente para mim e perguntou: _Estamos no lugar certo? A senhora que estava com ele comprando, de costas, respondeu que sim, mas ele disse para ela:_ talvez não... e me perguntou apontando uma prateleira: _Deseja ver esta estante? Sorri, agradeci enquanto me levantei e puxei meu carrinho de compras para perto de mim. Perguntei: _Como está você Cauby Peixoto? Quando e onde será sua próxima apresentação? E ele no mesmo tom que tinha usado para falar comigo, respondeu que estava bem, muito bem, perguntou como eu estava, me ouviu dizer que eu estava bem e me disse o nome do teatro e os dias dos espetáculos, confirmando com a senhora que o acompanhava os horários.
Ninguém veio conversar com ele. Ninguém falou o nome dele.Ele não estava portando óculos escuros.
Tinha uma peruca de cabelos em caracóis. Na pele do rosto e dos lábios, uma maquiagem. Era dia. Nos despedimos com simpatia.
Levei no meu peito a impressão de ser um humano brilhante, de voz bela, com atitudes belas.
Merecia muita consideração. Ainda que ele não fosse o cantor das musicas que eu ouvia, sempre que cantou na tv, no rádio ou no teatro, apresentou voz clara e  imensa.
 Inteira. Emocionada e emocionante.
O ser humano tem dificuldade de aplaudir ou reconhecer valor até naquilo que tem evidente valor?
O ser humano abafa o que brilha com luz própria?
Mas, o que brilha com luz própria é brilhante e nada pode apagar.

Fernanda Correia Dias
in Ontem, dez minutos para a meia noite, o coração dele fez silencio.
Estava comemorando sessenta anos de profissão de cantor.
Quantos seres humanos podem comemorar sessenta anos de trabalho em alguma profissão?
E na profissão de cantor? 

  
  

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