sábado, 21 de novembro de 2015

Nossa Senhora
Nossa Senhora

Yara com ipsilon.

Eu lembro quando vi Yara pela primeira vez. Fiquei observando que tinha os pés gordos e os sapatos pareciam umas barquinhas...adernando...Abarrotadas de pé e dedos gordos...Eu lembro que eram olhos grandes e verdes quase do tamanho de pêssegos em uma cabeçorra.  O cabelo era amarelo sem ser pintado. Amarelo palha todo frisadinho e a pele da cor de um caramelo de leite, Quando sorria faltavam uns dentes , mas sorria sempre e muito, um sorriso calmo e sem nenhum constrangimento pela falta de dentes. Os últimos dentes lá no fundo da boca ainda eram brancos e lindos. As mãos eram inchadas como os pés. As mãos eram irmãs das estrelas do mar. Com umas verruguinhas e várias pintinhas marronzinhas... Sempre que nos visitava Yara nunca tinha almoçado, nem lanchado e nem jantado, mas trazia uma lata de marmelada... Nós não precisávamos de uma lata de marmelada, nem comíamos marmelada. Mas não dizíamos para Yara...Só a mamãe sabia disso e dizia: Eu falei para você não comprar nada, que você não gastasse nem um tostão que eu te dei para a sua passagem de trem... para seus lanches...Para você vir aqui  e ir e voltar da faculdade...E Yara dizia: _É para as crianças...É para as crianças... Elas gostam...!  E nós nos entreolhávamos... Yara não tinha os livros, os códigos... As apostilas... da faculdade....Os livros de Direito eram caros...Yara estudava nos livros da mamãe. Ganhava cadernos e canetas da mamãe. Mamãe ajudava. Lia em voz alta para elas mesmas ouvirem e pedia para Yara ler também em voz alta e saberem o que estavam lendo. Mamãe corrigia a leitura de Yara que era uma tartaruguinha lendo ao lado da voz de ouro musical da mamãe! Quem aprendia muito com elas era eu. Yara não era burra. Mamãe dizia que era burrinha... Mas que estava ficando sabida e inteligente e ia ser brilhante. Brilhante!
    Brilhante! Minha mãe depositava seu afeto nas pessoas que mais precisavam e nos ensinava que essas eram mesmo as que mereciam as mãos sagradas do nosso amor. Se o professor Machado Paupério precisava recuperar o movimento do braço, da perna e da mão, minha mãe ia diariamente visitá-lo para estimular a escrita, caminhada e eu ia junto... Se o ascensorista da faculdade sonhava em ser advogado, ela o entusiasmava entregando os livros  lidos para que ele estudasse e indicando o que estudar até conseguir que ele prestando vestibular ingressasse na faculdade!  Ela gravava as aulas com o gravador de rolo  dela, datilografava e entregava graciosamente ao professor a aula transcrita no papel. O professor autor e dono da aula, lia e corrigia o texto dele explicitando melhor. Em seguida autorizava que todos os alunos que se interessassem pela aula, fotocopiassem aquela aula quantas vezes necessitassem. Assim nasceram apostilas dos professores, que depois viraram os livros de autoria deles nas editoras interessadas em publica-los. Minha Mãe me dizia que ela gravava a aula porque assim ajudava aos colegas e aos professores e que este foi o método que ela criou para si mesma estudar, fixar o conteúdo, refletir e produzir ensaios e grandes indagações. Os colegas reconheciam que as aulas dos professores para aquela turma do anfiteatro do quarto andar, eram magistrais porque eles sabiam que a minha mãe iria gravar e copiar fidedignamente e assim, prestigiados por terem uma ouvinte e interlocutora exigente e inteligente, preparavam aulas encantadoras e geniais e dedicavam as aulas à ela! É verdade, dedicavam mesmo.
      Seus professores tinham imenso orgulho da aluna atenta, participante e por todos os anos que ela estudou, foi sempre a representante da turma.  O fato é que mamãe cursou toda a faculdade com nota máxima, destacando-se como a excelente aluna  estudiosa. E ainda outro detalhe: ela prestou vestibular aos quarenta anos, quando a mãe dela faleceu. Foi estudar Direito, quando a maioria das mulheres na idade dela ainda recriminavam e cultivavam preconceitos velados com as mulheres modernas que saiam para trabalhar fora ou estudar!          Ela teve o exemplo da mãe dela que sempre trabalhou por ter sido órfã de pai e mãe e viúva. Mamãe foi estudar Direito para defender o Direito do Autor no Brasil continuamente desrespeitado, pouco propagado e esclarecido e raramente exercido em defesa do autor até os dias de hoje. Especializou-se e enfrentou gravadoras multinacionais para devolver a autoria dos poemas de sua mãe  apropriados indebitamente, musicados e comercializados exaustivamente, até que vencendo a causa em ação judicial de rito sumário, devolvesse à mãe a autoria dos poemas!
     Muitas vezes ajudei a mamãe a levar bolsas de roupas que ela distribuía na faculdade para os colegas. Sapatos e roupas de criança também. Em Yara, estas roupas não cabiam, mas Yara criava soluções...Afastava botões, abria costuras...acrescentava uma fita...Ela era mesmo grande. Nos cabelos desgrenhados, ela passava água para diminuir o volume... E  alisava com a mão reunindo em travessas... Yara sonhava em se formar advogada para exercer a justiça sobre os usurpadores dos bens de sua família que levaram seus pais à miséria, falência e maus tratos depois de apropriarem-se à força de imóveis e casas comerciais herdadas dos avós.
Mal chegava em nossa casa Yara abria a bolsa e tirava a marmelada  nos informando...Outro sabor!...Dizia sorrindo...Gostamos de marmelada mamãe?? Nem sabemos o  que é marmelada... Mamãe acrescentava: Ah...Não sabem, mas vocês vão gostar... vocês vão gostar... E nos servia em louça de porcelana acompanhada da queijinho fresco...Uma delícia!Mamãe dizia... E nós nos entreolhávamos agradecidos por Yara em nossa casa, manter aquele sorriso imenso de felicidade por estarmos comendo todos reunidos em torno da mesa...Aquele docinho, que ela trazia sempre que ela nos visitava, contrariando com amor as orientações de economia da mamãe, passou a ser um instante de sabedoria compartilhada em que ela e a mamãe nos reunia para vivermos o gosto da fragilidade da vida; o gosto das tristezas da Yara por instantes suspensas ou superadas; o gosto da amável gratidão que ela nos ensinava no gosto da marmelada!
Fernanda Correia Dias
in O Ipsilon de Yara, como ela gostava de nos lembrar, trouxe a curiosidade no alfabeto grego e papai, matemático e engenheiro calculista, com nome grego, Helio, me ensinou as outras letras gregas:  alfa, beta, gama, épisilom, zeta, eta,teta, lambda,mi, csi,pi, ro, sigma, tau, fi, qui, psi, omega...


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