quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Beira da Lagoa Rodrigo de Freitas . Foto Fernanda Correia Dias

Ontem ouvi: vou levando minha boiada, vou tocando os dias, longa estrada, seguindo em paz,
simplesmente, tocando em frente. Fiquei muito perto da minha mãe, Maria Mathilde. Ela usava estas metáforas para se expressar. Falar dos filhos, sobrinhos , família. Da vida. Falar das perspectivas e das suas atitudes. Ação. Também desafiava: Dou um boi para não entrar e uma boiada para não sair quando sabia que estava com a razão. Ela também nos uniu aos parentes do meu irmão no Rio Grande do Sul. Lembrei dos campos lisos, limpos e planos em São Francisco de Paula, quando Jorge e Dalva assopraram no berrante e uns pontinhos pretos foram crescendo velozmente até onde eu estava e eram bois imensos...Enooormes, em disparada na minha direção e sem freios... Para comer o sal.
Também as ovelhas... Que lindo ficar no centro do bando de ovelhas rodando... Jorge laçava,  para aparar o pelo! Ontem eu estava muito longe e aqui. Simultânea.
Olhando para os meus pés vi as sandálias franciscanas brancas, que a Mamãe comprava para ela e para nós, filhos e sobrinhos... Só as freiras, as enfermeiras e nós usávamos felizes...Combinava com nossos imensos sorrisos! Era muito agradável e confortável o pé no couro. Mas... pé no couro...? Quem sabe o que é isso? Alguém ainda fabrica sandálias franciscanas de couro? Onde? Hoje tudo é plástico!
Minha mãe nos dava o melhor conforto corporal, falava em metáforas óbvias e enxutas, nos dava felicidade e união a tudo e todos. Nos perguntava quando errávamos: Você gostaria que alguém fizesse isso com você?  Seria bom se fosse consigo? Já ficou no lugar dela? Nossas bonecas francesas flechadas e estripadas à facadas. Amarradas pelas pernas pelos caubóis. Nos ensinou a força de perdoarmos os caubóis. Nos ensinou a nos unirmos, a sermos irmãos, nos entendermos, nos ampararmos. Nos socorrermos.Deu exemplos praticando na própria vida o que sonhou para ela e para todos nós.Líder natural.Era a primeira a se erguer para levantar a mudança. Socorreu sua mãe, sua irmã, seu professor, seus amigos, nossos amigos e muito desconhecidos e todos nós na vida e na morte. Fazer o bem sem olhar a quem. Nos preparou para compreender a vida de tal maneira com amor absoluto que ao ouvir seu nome todos nós nos levantamos e estamos aptos. Tal como ela nos ensinou a fazer quando ouvíssemos o nome da mãe dela e dos nossos. E a prática teve início na nossa mais tenra idade quando nos ensinou  atravessar a mão dupla da Avenida Atlântica. Éramos cinco crianças e ainda amigos e agregados. Tínhamos que caminhar em bloco: Quando eu der o primeiro passo faremos juntos e no segundo também. Ninguém vai na frente e ninguém fica para trás. Todos juntos! 

Fernanda Correia Dias
in voltas de bicicleta na Lagoa Rodrigo de Freitas com minha mãe Maria Mathilde




segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Centro do Rio de Janeiro . Foto Fernanda Correia Dias

Recentemente eu vi vários pássaros machucados e mortos caídos na grama. Meu amigo então insistiu com o arquiteto: Rever imediatamente o atual projeto instalado, apresentando nova proposta que substitua os vidros e espelhos. Os pássaros estão voando na direção do vidro e dando com o bico no vidro porque vêem mais natureza refletida no espelho. Pura esperança de voar e ir além. E vão. Olhei para este prédio todo espelhado e  vi o reflexo do Rio de Janeiro antigo. Se fosse uma árvore frondosa no reflexo quantos pássaros morreriam? E sendo um céu? Quantos não estão morrendo?
E o que é um pássaro caído no centro do Rio do Rio de Janeiro? Ou vários? Alguém precisa lembrar a um arquiteto o que é a natureza?

Fernanda Correia Dias
in O que é a natureza?

sábado, 2 de agosto de 2014

Garça no Itanhangá   
A garça no Itanhangá II . Foto Fernanda Correia Dias

Ita é pedra, rochedo, penedo...anhangá é espírito, alma espectro, diabo, fantasma? Em tupi-guarani?
Pedra viva, pedra onde habita o espírito? O diabo? Pedra da vida? Pedra que fala? 
A pedra emitia um som quando ventava entre suas paredes... Compreendo...  E fiquei pensando nisso e olhando a garça refletida na água daquele riozinho que corre paralelo ao canal de entrada e saída da Lagoa de Marapendi para o Oceano Atlântico. A garça escolhendo o que ia jantar... Eu, pensando nos peixinhos que entravam da água salgada para a água doce...Os peixinhos da água salgada buscam os manguezais nas águas doces para procriar e criar seus filhotes. Então os manguezais são os berçários dos futuros cardumes de água salgada. Compreende garça?  Porque os peixes de água salgada, não procriam em água salgada... eles buscam abrigo nas águas doces... Você que é ave marinha, que sabe que manguezal é refúgio natural de alimentação, reprodução e descanso das aves migratórias e muitíssimas espécies, garça, anote aí: martim-pescador, colhereiro, guará e ainda...camarão, guaiamum, marisco, sururu, ostra, lontra, aranha, morcego, linguado,rã, sapos, jacarés, fitoplânctons, frutos, folhas... E tudo isso está neste ao longo da Lagoa e canal de Marapendi e neste estuário garça, em que o canal encontra o mar e o mar encontra o canal . Então garça, preste atenção, Itanhangá pode ser uma pedra que fala, uma pedra do diabo, pedra viva, pedra onde habita o espírito que certamente é o da vida e que os tupi-guaranis não queriam que ninguém destruísse nada por aqui. Que preservaram e protegeram a abundancia de renovação de natureza com o nome que deram ao local. Nome para afastar os destruidores. Mas hoje, garça, quem escuta e respeita  a voz do espectro? Os homens estão muito longe e surdos de si mesmo e não querem compreender os sentidos guardados nas palavras mais antigas dos idiomas dos seus países. Estas obviedades de muito mais que quinhentos anos.
Fernanda Correia Dias
in O homem moderno não respeita a voz do espectro.
Quebra-mar . Foto Fernanda Correia Dias 

Ela era muito mais alta que eu quando eu talvez nem tivesse 9 anos. Cabelos longos, grossos, em linha reta, bem amarelos e com muito volume, pele branca, áspera. No rosto, na mão, no braço aquela pele áspera. Horrível era o que eu pensava quando precisava jogar handebol com ela no meu time, onde eu era atacante ou goleira e esbarrava em todo mundo, inclusive nela. Mas a América, era naquele tempo, a minha melhor amiga. Deve ter sido isso que ela pensou agora que eu encontrei com ela esperando o sinal abrir, para atravessarmos: Minha melhor amiga. Eu li isso na agulha do olhar azul dela. Na quebra da pálpebra apertando a íris pronta para tirar dos meus pensamentos: Não acredito! Quase cinquenta anos que não nos vemos! A massa humana que atravessava a rua, veio por minhas costas e as cores dos corpos e cabelos se misturaram como espuma ao instante anterior e sem ver mais onde estava aquele olhar na onda, por destino, no volume eu perdi América. America eu sei que era você. Perdoe a vida. Os homens. Todos os desencontros. 
Com Marília, não foi assim. Foi mais difícil. Ela estava sentada ao lado de uma enfermeira e olhou para mim e sorriu. Aquele sorrisinho que Marilinha sorria para mim com olhinhos de criança. E quis conversar comigo e eu conversei. E falamos de lembranças. Tomamos cappuccino quentinho. Eram muitos anos passados.
Quando perguntei como estava o Eduardo, ela disse que estava bem. As meninas...? Também estão bem! Netos, bisnetos? Sim! Umas gracinhas...! A enfermeira estava com os olhos arregalados olhando para mim. Marilinha estava contente. Me perguntou sobre minha mãe. Se estava boazinha, se estava ali comigo... Respondi que sim, dentro do meu peito. Ela me olhou com calma e profundamente e sorriu. Apareceram os dentes grandes. Mas percebi algo muito forte no fim do olhar e do sorriso. Não era ela. E por que? Não sei. Não era ela. Fui chamada por outra enfermeira, me despedi de Marilinha, beijei aquela que não era mais Marilinha. Duas horas depois a enfermeira me procurou para me fazer uma pergunta: A senhora pensa que o nome dela é Marília? É. Não é? É. Mas não é Valls não. E me disse o sobrenome. Ela está esquecida. Conversa com todos e é mesmo muito simpática. Agradeci. Não quis explicar à enfermeira como foi que eu percebi que não era Marilinha, mas... lembre-se... cada pessoa é única.
Fernanda Correia Dias
in Cada pessoa é única.