domingo, 8 de junho de 2014

Cozinho  
A casa delas. Desenho e foto de Fernanda Correia Dias

Cozinho intuitivamente. Sem receitas. Sem medidores. No olho. No alho. No gosto. Compondo o gosto por memória de paladar. Nunca invento nada. Tudo já existe dentro de mim. Não me atrevo a convidar ninguém. É sempre uma composição de vida em sabores que meu corpo está pedindo. Fico espantadíssima com a delícia do resultado. Hoje iscas de fígado finíssimas... Todos que eu conheço detestam e eu... Adoro. Acompanha: arroz integral, sal, alho, água e um canteiro cru de agrião, salsa, cebolinha, hortelã, misturadas e bem picados a ponto de não dar para reconhecer folha nenhuma, visualmente. Mas... estalam um jardim no peito e eu acrescento a beleza da forma e sabor de duas ou três folhas lindíssimas de coentro que deixo caídas no jardim do canteiro. É o outono dentro de casa e perto do mar.
Tirei do forno o papelote que fiz com fígado, cortei em tiras longilíneas e deitei dentro de um caldeirãozinho as tiras sobre cebolas cortadas, cobri com pedaços saborosos de tomate e uma olhada de água filtrada. Rodei  a colher para misturar, vi que o caldinho estava se formando , então desenhei com azeite uma espiral de cinco voltas. Tornei a rodar a colher e apaguei o fogo. Servi o fígado com cebolas, tomates e azeite ao lado do arroz integral e o canteiro no outono. Um frescor quentinho me abraçou. Finalizei com a sobremesa de duas fatias de queijo branco picadas em cubinhos dentro de uma pequenina e profunda terrina, cobertas por uvas vermelhas bem fervidas, desmanchadas e ainda perfumosíssimas e quentes. Sorvi às colheradas.
Todo o meu corpo fez uma reverência à sabedoria da minha memória e a minha memória agradeceu ao parente próximo de quem herdei esta competência e habilidade. Minhas células sorriem. Vou ouvir no Brasil o violonista clássico francês Thibault Cauvin. Você conhece?
Fernanda Correia Dias
in Talvez nós não sejamos nós, 
mas umas combinações de arquivos herdados...



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